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Postado 7 de fevereiro de 2022

Ercílio Bonifácio de Lima: duas décadas trabalhando para cuidar da cidade

Em 1º de junho de 2004, ele foi admitido como zelador na ACGB. Agarrou a chance e não a largou mais.

Ele é o funcionário mais antigo da Associação dos Condomínios Garantidos do Brasil (ACGB). Com um projeto de zeladoria urbana, a entidade foi fundada em 2000, no limiar do século 21. Ercílio Bonifácio de Lima, 64, nascido em Mercês, município encravado no sudoeste de Minas Gerais, chegou quatro anos depois.

Mineiro, pero no mucho. Aos 12 anos, Ercílio já se mudara com a família – o pai, a mãe e quatro irmãos – para o sítio do avô, em Faxinal, no Paraná, onde não demorou para que começasse a levar a vida dura de quem trabalha com a terra e dela tira seu sustento.

Quando o sítio foi vendido, porque o pai não se interessou em administrá-lo, Ercílio aceitou proposta do novo proprietário e nele ficou, cumprindo as tarefas que já lhe eram destinadas e acrescentando outras que a obrigação e a responsabilidade exigiam.

Não demorou para que a crise econômica instalada no país na década de 80 – o presidente atendia pelo nome de José Ribamar Sarney – levassem Ercílio a tomar novos rumos, juntamente com a família. O destino era Curitiba, a capital do Paraná, onde empregos certamente não faltariam. A mãe, hoje com 111 anos, sabia o quanto a cidade grande era sedutora e já alertara o filho. “Você pode ganhar dinheiro e construir a vida ou se consumir nas ruas e esquinas, porque alguém sempre vai querer esvaziar o seu bolso”.

Ercílio não teve dúvida sobre qual caminho escolheria. Em pouco tempo, havia conseguido um emprego cuidando da recuperação de válvulas hidráulicas. Depois trabalharia por quatro anos como oficial de manutenção na Repar, refinaria da Petrobras localizada no munícipio de Araucária, na Grande Curitiba. Foi na usina que ele, de fato, se transformou ou se transmutou em operário. Antes, era um camponês perdido na urbanidade. Um agricultor experimentando o dissabor da selva de pedra. Agora parecia familiarizado e identificado com tudo ao seu redor: as máquinas e os metais, as estruturas gigantescas cuspindo óleo e fumaça, os mecanismos intrincados e incompreensíveis. Ercílio sabia: a cidade era feita de concreto e asfalto com os quais se nutria e invadia espaços. E isso não lhe causava espanto.

Na Repar, também enfrentou seus medos. Em certa ocasião, convocado por três supervisores – eles eram chamados de “cabeças brancas” – recebeu a tarefa de fazer a manutenção na torre de fogo. Isso queria dizer escalar uma escada estreita e vertical que devia ter uns 100 metros – o equivalente a um prédio de 33 andares. Depois de cumprir metade do percurso, arriscou-se a olhar para baixo. Daquela altura, os supervisores pareciam pontos brancos e Ercílio teve a impressão de que acenavam. Por precaução, não retribuiu. Estava paralisado, as duas mãos agarradas ao cano e ele sabia que precisava sincronizar os movimentos se quisesse seguir em frente. Galgar uma escada tão íngreme quanto aquela significa que, em algum momento, seria preciso apoiar um dos pés, não importa se o direito ou esquerdo, movimentar o outro um degrau acima e só então desgrudar as mãos em sequência. Um vacilo e as coisas poderiam ficar complicadas.

A torre de fogo é chamada assim porque se assemelha a um maçarico permanentemente aceso nas chaminés das refinarias e dos campos de petróleo. O sistema queima o excesso de gás que escapa pela tubulação, reduzindo o risco de explosões.

Ao descer a escada mais tarde, os supervisores o esperavam. Um deles quis saber por que ficara parado nos degraus. Isso significava o quê? Ercílio negou que tivesse medo de altura, mas não convenceu o chefe. Pois pensasse o que quisesse. Ele não se importava. Mais alguns anos ali e se ficasse farto, ele procuraria outro emprego. Se cansassem dele, o dispensariam. É assim que a roda da vida gira, não é mesmo?

Em fins da década de 90, Ercílio foi contratado pelo Clube Curitibano para trabalhar na manutenção do parque aquático. O expediente começava às 11 da noite e só terminava às 7 da manhã do outro dia e ele não poderia se dar ao luxo de parodiar a máxima de Groucho Marx dizendo despretensiosamente: “eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como funcionário”.  Precisava do emprego mais do que nunca.

Aos 29 anos, Ercílio se casara com a viúva Edi de Matos Cordeiro, uma mulher mais velha, mãe de oito filhos, e as necessidades da família batiam à porta. Quando as crianças ainda cruzavam as linhas tênues da infância e da adolescência – mais tarde um deles “seria matado” por motivos não muito bem esclarecidos – ele impusera uma condição para que vivessem sob o mesmo teto, talvez a única: “Exigi respeito. Eu os trataria como filhos e não fazia questão que me tratassem como pai. Talvez os menores se apegassem, mas o importante era o respeito”.

O trabalho no clube era estafante. Ele integrava um pequeno exército responsável por cinco piscinas, controlava a caldeira, checava a temperatura da água e estava sempre atento à limpeza, uma exigência diária que envolvia não só o parque aquático, mas tudo o que o circundava. À certa altura, dona Edi também passou a fazer parte do quadro de empregados, cuidando da higienização de 12 banheiros.

Em cinco anos e dois meses, Ercílio se especializaria no trabalho, a ponto de sugerir técnicas de filtragem e tratamento que diminuiriam os custos de manutenção. Mas havia um “The End” inesperado. Uma piada dita em hora e lugar errados resultariam em sua demissão.

Clubes de elite, como é o caso do Curitibano, fundado no século XIX por um certo coronel Rodrigues, acompanhado de outros cavalheiros de fraque e cartola, costumam elencar prioridades e as piscinas, não àquela época, mas nos anos subsequentes, estariam no topo delas. Não se sabe o que Ercílio deixou escapar ao supervisor tão logo soube que haveria cortes na equipe, ele mesmo não revela, tal o constrangimento. Os tempos eram estranhos, o inverno se aproximava, havia uma crise econômica no horizonte etc etc. O fato é que o supervisor, convencido pela atitude do funcionário ou predisposto a prejudicá-lo, transmitiu a “gracinha” ao chefe de manutenção que levou-a adiante ao gerente e este ao diretor de recursos humanos. Assim, era uma vez uma vaga de trabalho.

Quanto tempo o tempo tem? Se você está desempregado, as horas contam-se em meses, os minutos em semanas, os segundos em dias. E as batidas do relógio são aflitivas e desesperançosas. Ercílio usa a expressão “a mode” intercalada nas frases para explicar tudo ou quase tudo. De que forma, por exemplo, ele migrou da condição de membro orgulhoso da população economicamente ativa para a estatística de desocupados. Foram dois anos amargos. Em 2004, quando retornava para casa, dando mais um dia como perdido, disse ao colega que o acompanhava que passaria na agência de empregos, em Fazenda Rio Grande, cidade onde ainda mora, para informar-se sobre uma possível vaga.

Na agência, a atendente não reclamou quando Ercílio surgiu em sua frente. Ela poderia, por conta própria, ter decretado o fim do expediente, o que não era incomum. Em vez disso, conferiu o cartão que ele lhe apresentara e em seguida bateu os dedos no teclado.

“Há uma vaga aqui, mas não sei se o senhor vai se interessar”.

“Se você me disser qual é o trabalho”, disse secamente.

“Serviços gerais. A empresa fica em Curitiba”.

“É justamente para onde eu quero ir. Alguma exigência?”

“Bom, tem que fazer reparos, mas não sei se vão contratá-lo”.

Talvez a atendente não tivesse ficado satisfeita com a figura de Ercílio. Era um dia quente, havia marcas de suor em sua camisa e ele aparentava ser ainda mais esquálido do que realmente era.

“Acho que poderiam experimentar o ‘Magrão’”, brincou, referindo-se à sua aparência.

Ela não sorriu, mas passou-lhe o endereço.

Em 1º de junho de 2004, Ercílio foi admitido como zelador na Associação de Condomínios Garantidos do Brasil. Agarrou a chance e não a largou mais. Em quase 18 anos, ele colecionou amigos e se tornou o funcionário mais antigo da ACGB. Com muito orgulho. Antes, atendendo o bairro do Portão, ele empurrava o carrinho de mão diariamente, levando a bordo ferramentas e produtos necessários para a despichação de muros e portas de lojas, limpeza de orelhões – quando eles existiam – e execução de pequenos reparos. Na hora do almoço frequentava o Restaurante Bom Jesus, cujo dono, o Samir, nunca lhe cobrou a refeição. Ercílio insistia, mas ele recusava. Sentia-se ofendido. Dizia que era uma troca justa. Tratava-se de uma retribuição ao melhor zelador do bairro.

“Com respeito se vai longe”, afirma Ercílio. Ele cumprimentava os mendigos, conhecia os catadores de papel pelo nome, despedia-se daqueles que seguiam para o trabalho, dava boas-vindas ao que retornavam, fazia mesuras aos pombos, ajudava comerciantes a levantar as pesadas portas das lojas e se tornou tão conhecido nas imediações que até mesmo os garotos do picho lhe deram trégua. No primeiro momento, as pichações eram diárias. Depois passaram a ocorrer a cada quatro ou cinco dias. Era um bom sinal.

Em anos recentes, Ercílio viveu maus bocados. O primeiro sintoma foi uma dor nas costas insuportável. O diagnóstico do médico veio em seguida: hérnia de disco. O tratamento obrigou-o a interromper o trabalho, passar meses na cama e se render aos cuidados da mulher. Até os pequenos movimentos lhe eram dolorosos. Ele emagreceu ainda mais, a ponto de pesar apenas 47 quilos. Quando necessitava sair da cama, era amparado. Nas consultas ao médico conduziam-no de carro. E quando precisava que lhe aplicassem uma injeção esperava que o humor do farmacêutico estivesse em seus melhores dias, porque teria que atendê-lo no banco do passageiro.

O círculo de amigos e parentes foi essencial para sua recuperação. A doença o pegou a meio caminho da construção de sua casa em Fazenda Rio Grande. Era ele quem a construía, tijolo por tijolo num desenho mágico. Concluíra o assentamento das telhas. Faltava o forro. E foi surpreendido quando um caminhão chegou à sua porta trazendo todo o material necessário mais os trabalhadores que se encarregariam da conclusão da obra. Presente de um certo Dr. Queiroz que reclama o direito de colocar-se à margem nessa narrativa. A uma distância de leitor, não de personagem. Que seu desejo seja satisfeito.

A certa altura, Ercílio recuperou-se do que ele chama de “gastura” nas costas e voltou a trabalhar. Era o que mais queria. E dessa vez trabalhando no centro da cidade ao lado de um parceiro de labuta. Ele não se queixa, mas diz que, em certas ocasiões, começo da manhã ou fim de tarde, quando o dia espreguiça-se morno, seu telefone celular vibra com a mensagem de um velho amigo do Portão. Ele cobra notícias, visita, prosa, café e todas aquelas coisas que laços de amizade cultivam e eternizam.

Deambulando como um filósofo, Ercílio reconhece que está em dívida com o companheiro, com o bairro que o acolheu, com as pessoas que nele vivem e com as ruas que palmilhou por quase duas décadas. Agora mesmo ele está contando uma história para os 19 netos e os 5 bisnetos. E essa história é escrita em um muro que ele enche de tintas. Um dia há de pintá-lo novamente. No outro dia também.

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